Como pode ser que um dos mais inovadores projetos audiovisuais do Hip Hop norte-americano tenha sido relegado ao esquecimento? Pode ser que a percepção do pioneirismo e relevância de uma obra como “Murder Was The Case” pode ter sido afetado pelas Coast Wars e todas as rusgas desnecessárias que a fizeram ser manchetes das páginas policiais tanto quanto das culturais, mas de todo modo é injusto que ele tenha sido deixado de lado na gloriosa trajetória de todos os envolvidos.

Snoop acabava de colher os louros de seu primeiro grande sucesso fonográfico, “Doggystyle”, e dava seus primeiros passos em direção ao estrelato mundial que o consagrou até os dias de hoje. Era uma empreitada ousada, trilhando um caminho ainda pouco desbravado por outros rappers, já que aqui falamos de um período contemporâneo à ascensão desses músicos à qualidade de commodities hollywoodianas. Seus colegas de Death Row, Ice Cube e 2Pac começavam a se tornar astros das grandes telas, seguindo um longo processo de absorção da cultura Hip Hop pelo entretenimento comercial que já vinha das décadas passadas e pode ser recapitulado em alguns de seus mais memoráveis momentos: o início da trajetória de cineastas como Spike Lee e John Singleton; o estrondoso sucesso de filmes como “Wild Style”, “Beat Street” e “Colors”; Kurtis Blow como garoto-propaganda da Pepsi, entre tantos outros.

Ademais, o papel que a MTV teve na criação e difusão de uma linguagem fílmica que parecia feita sob medida para a narrativa fluida do Rap foi fundamental. O videoclipe era a nova forma expressiva privilegiada pela música popular norte-americana e foi rapidamente ressignificada pela comunidade afro-americana em sua brilhante reformulação do cenário cultural do país, um que ela mesma havia ajudado a criar desde o pós-guerra.

Então, já em meio a um fértil cenário de recepção da cinematografia musical urbana, Snoop e Dre se arriscam a lançar não apenas um album, mas a trilha de um curta-metragem que conta a trajetória de um Calvin Broadus (o próprio Snoop), traficante, que é morto após um confronto com a polícia e faz um acordo com o tinhoso para retornar e se redimir com seus entes queridos. A produção musical é praticamente toda de Dre, ali no auge dos seus poderes como o arauto do G-Funk – reencarnação gangsta do P-Funk e do Boogie – com contribuições de DJ Quik, Sam Sneed, Dat Nigga Daz e outros membros e colaboradores da sua posse, Dogg Pound.

A faixa-título, que constava em seu segundo “Doggystyle”numa versão levemente alterada, aqui ela aparece como alguns minutos  após ele ser baleado, a introdução foca nos momentos logo após o ocorrido, insinuando uma continuidade entre faixas e álbuns. Assim se inicia a fábula e já nos presenteia com algumas das melhores rimas de Snoop:

 

As I look up at the sky

My mind starts trippin,

a tear drops my eye

My body temperature falls

I’m shakin and they breakin tryin to save the Dogg

Pumpin on my chest and I’m screamin

I stop breathin, damn I see deamons

Dear God, I wonder can ya save me

I can’t die Boo-Boo’s bout to have my baby

I think it’s too late for prayin, hold up

A voice spoke to me and it slowly started sayin

“Bring your lifestyle to me I’ll make it better”

How long will I live? “Eternal life and forever”

And will I be, the G that I was?

“I’ll make your life better than you can imagine or even dreamed of

So relax your soul, let me take control

Close your eyes my son” My eyes are closed

 

Nada de redenção ou arrependimento, o pacto é feito tendo em vista não apenas a salvação, mas o aprimoramento de toda uma vida de crimes bem-sucedida. Crime pays and the devil saves. Para quem, como ele, viveu no corre, em Compton, isso é o paraíso. Ele ganha tudo depois, mas roda e seus trutas, obviamente, acabam mortos. A rua cobra e não perdoa.

A sequência de faixas é um desfile primoroso dos talentos da Dogg Pound e da Death Row, até Jodeci e Jewell dão uma palinha para amaciar as coisas. Até 2Pac ia participar, mas ali já começava a aflorar a treta com Suge Knight, cabeça do selo e, supostamente, essas aparições viraram “Pain” e “High Till I Die (Interscope Version)” ao invés de comporem as faixas. Não obstante a ausência dele, o álbum inteiro é perfeito do começo ao fim, cada rima, cada beat, cada inserção, cada interlúdio, como podem ouvir nos clips… nada muito surpreendente para uma coligação de talentos desse naipe envolvidos num projeto tão adiante de seu tempo (hello, Bey…) e que é o ápice de uma sonoridade que até hoje nos influencia. Um musical do gueto.

Snoop Doggy Dog & Various Artists – Murder Was The Case: The Soundtrack

Tracklist:

01. Snoop Doggy Dogg – Murder Was The Case (Remix)
02. Dr. Dre & Ice Cube – Natural Born Killaz
03. Tha Dogg Pound – What Would U Do?
04. Snoop Doggy Dogg & Tray Deee – 21 Jumpstreet
05. Nate Dogg – One More Day
06. Jewell – Harvest For The World
07. Snoop Doggy Dogg – Who Got Some Gangsta Shit?
08. Danny Boy – Come When I Call
09. Sam Sneed & Dr. Dre – U Better Recognize
10. Jodeci & Tha Dogg Pound – Come Up To My Room
11. Jewell – Woman To Woman
12. D.J. Quik – Dollars & Sense
13. Slip Capone & CPO – The Eulogy
14. B-Rezell – Horny
15. Young Soldierz – Eastside-Westside

 

Murder Was The Case :: Death After Visualizing Eternity (The Movie)